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  • Foto do escritor: Bernardo Caprara
    Bernardo Caprara
  • 11 de jan.
  • 2 min de leitura

Quatro décadas. Enquanto balançava a rede e a cachorra dormia, sorrindo ao pensar nos cabelos cor de fogo, lá estava o peso e a leveza de tudo que colecionava nesse tempo todo. Era como se trocasse de lugar com a criança que corria pelo pátio e atravessava aquela casa grande com cheiro de mar tendo uma bola colada aos pés. Havia o Sol e as gentes, humanas ou não. As de dentro da casa e as de fora, as que eram de dentro e passaram a ser de fora e as de fora que passaram para dentro. Havia a aventura dos chutes, das pedaladas, das neblinas e das risadas coletivas sobre as ruas da majestade litorânea das bandas do Sul.

 

Havia dias quentes como uma manhã vermelha de um domingo mundial, no meio de um dezembro urbano do começo da terceira década. Dias de alegria como quando se hasteava a Gigante Bandeira Vermelha, tremulando sobre a grama da frente da casa de pedras. Sob a força solar, as janelas do existir se abriam em varandas e sacadas, as flores brotavam entre espetos áridos e a bola desfilava alta no ar entre os toques habilidosos das amizades, apresentando a quarta dezena de anos. Desde muito tempo, a luz que emanava do leste também se banhava de letras, das escritas e das faladas, daquelas que traduziam histórias de mundos que foram e que poderiam ser e eram capazes de nos fazer melhores do que antes.

 

Havia, contudo, temporadas de chuvas e tempestades que pareciam durar quartetos de tempos, anunciadas pelos despotismos de dentro e de fora. Já não havia mais vida na casa de frente para o mar, nem se corria pelo pátio, preparava o almoço ou aproveitava a sesta. Ensopadas de ausências, dores e incompreensões, as vidas daquele tempo, como a dele próprio, pulsavam dilúvios de ilusão entre muros que caíam e cercas que se erguiam, fanatismos armados de ganâncias, ressentimentos e ódios, apologias dos porões da existência e explorações produzidas pelo deserto de oportunidades em que penava a maioria. Havia o cheiro daquilo que passa e não precisa voltar.

 

Certa vez, ouviu de um diáfano irmão ciclovioleiro riscado por sete mil linhas, profeta da flora curandeira, retumbante sentença que o haveria de mobilizar naquele e em outros tempos: segura firme, maltratando a tristeza! Foi então que as quatro décadas despontaram em um sábado resplandecendo o sorriso da mocinha de cabelos cor de fogo, saboreadas no café preto sem açúcar, na textura da areia e no vaivém das ondas do Sul da Terra. Com os olhos marejados de vida, voltou a lembrar da casa que fazia fronteira com as dunas e de quem já não está, mas permanece, desejando a firmeza e o frescor das manhãs em que os sonhos não envelhecem.

 
 
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